Deus libertou o povo de Israel da escravidão do Egito, realizando muitos portentos e prodígios: abriu-lhes uma passagem a pé enxuto pelo Mar Vermelho; sustentou-os no deserto com um alimento vindo do céu, o maná e as codornizes; para acalmar a sua sede, fez brotar da rocha duríssima uma fonte de água viva; deu-lhes a vitória sobre todos os inimigos que declararam guerra contra eles; por algum tempo, fez voltar atrás a corrente impetuosa das águas do Jordão; dividiu e repartiu por eles, segundo o número das tribos e famílias, a terra prometida. Mas aqueles homens ingratos, esquecendo tanto amor e generosidade, abandonaram e repudiaram o culto de Deus verdadeiro e entregaram-se, uma e outra vez, ao abominável crime da idolatria.
Depois, também a nós, quando éramos ainda pagãos e nos deixávamos arrastar para os ídolos mudos sem nenhuma resistência, Deus nos arrancou da oliveira brava da gentilidade, a que pertencíamos por natureza, e nos enxertou na verdadeira oliveira do povo judaico, podando alguns dos seus ramos naturais, e nos fez participar na raiz e riqueza da sua graça. Finalmente, não poupou o seu próprio Filho, mas entregou-O à morte por todos nós, como vítima e sacrifício agradável a Deus, para nos resgatar de toda a iniquidade e preparar para si um povo perfeito.
Tudo isto, mais que argumentos, são sinais evidentes do imenso amor e bondade de Deus para conosco; e contudo, como homens mais ingratos ainda, ultrapassando todos os limites da ingratidão, não refletimos no seu amor, nem reconhecemos a grandeza dos seus benefícios, antes nos tornamos mais insolentes e desprezamos o autor e dispensador de tão grandes bens. Nem sequer a surpreendente misericórdia de que usa continuamente para com os pecadores nos move a ordenar a nossa vida e costumes de acordo com a sua santíssima vontade.
Todas estas maravilhas são verdadeiramente dignas de ser escritas para perpétua memória das gerações futuras, a fim de que todos os que vierem a usar o nome de cristãos reconheçam a infinita bondade de Deus para conosco e não cessem de cantar os louvores divinos.
Do Comentário de São João Fisher, bispo e mártir, sobre os salmos (Ps. 101: Opera omnia, ed. 1597, pp. 1588-1589) (Sec. XVI)
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